mnemônico.

Comecei essas memórias bem cedo - há uma década, acho. Dez anos se foram. É uma grande parcela da sua vida, um grande processo. Há coisas que a gente não quer nem espera que dê certo, outras que a gente espera que acabe. Algumas experiências te engrandecem, outras te fazem uma pessoa pior e mais amarga. Há ainda aquelas que você quer que todos esqueçam, em geral um pequeno grupo desse todo; quase sempre é o grupo que mais se lembra do que é necessário esquecer. É o ciclo da vida.

Afinal, de que servem as memórias? Elas machucam. A filosofia trata de sua utilidade, do que é e do porque existir, do que se alimenta; os neurologistas tratam de sua mecânica e condição de existir. Historiadores as tratam como páginas viradas de um caderno frio e sem nenhum sentido que uma história logicamente melhor contada, à medida que melhor apurados forem os fatos, e que necessita ser documentada. Jornalistas as reescrevem com suas opiniões - com falas de pessoas submersas às questões temporais a respeito de materiais atemporais. Porque a moda agora é dar opinião que nunca estará errada. Ora, sinto que somos todos jornalistas hoje em dia.

Bom, tenho 27 anos hoje. Minhas paixões encontradas nos detalhes da vida ainda estão aí - menos latentes, mais ariscas, mais difíceis de se encontrar (eu sou fruto do meu tempo, e as minhas paixões nasceram em meu tempo também... me perdi da minha geração como um filho se perde da mãe no mercado). Acredito no amor e na paixão, mas sei da dificuldade e dos passos a se tomar para alcançá-los, da responsabilidade que é. Isso faz as coisas serem menos impulsivas. E algo interessante acontece quando nos sentimos assim, porque é inútil explicar coisas dessa estirpe para os outros, que não têm sua bagagem, como se comportar e qual o tamanho da burrada se as coisas não forem feitas assim, direito. E eu sei, hoje, que a melhor escolha que pude fazer é a de não ser professor, pelo menos pelo tempo que se segue.

Felicidade e o passar do tempo: não se pode ser feliz assim. A verdade é que precisamos de recursos. Procuramos mais dinheiro para que possamos aumentar a potência das nossas possibilidades de satisfação dos desejos, para que sejamos capazes de ser feliz mais vezes. Porque, veja, feliz é o momento, e não a vida. A vida é serena ou conturbada se o total das escolhas feitas ou de situações nas quais estamos envolvidos seja melhor ou pior, baseada em seus valores e de sua comunidade. Mas o momento feliz de fato é aquele do qual não queremos sair, que o antes e o depois não importam. O futuro e o passado são elementos fora da equação. Veja alguma palestra de Clóvis de Barros Filho falar sobre a felicidade que entenderá o que eu digo. Ou tome café com seu amor em uma padaria em um domingo chuvoso de Janeiro. Algumas coisas a gente jamais esquece.

Enfim, esse talvez seja o papel da memória: dizer que sua vida foi uma dilúvio de emoções e que algumas delas foram suficientemente boas para que possamos viver amanhã esperando uma repetição da dose. É um combustível, algo que nos faz ir adiante. E pra relembrar que no passado éramos mais fracos, mais feios, mais moles, menos potentes. Que éramos um novelo de lã depois da brincadeira do felino. Que sentíamos e vivenciávamos o mundo e seus deleites e angústias ao extremo porque não havia ainda uma espécie de "camada de ozônio" emocional. E o que se sente vira câncer, e vira. Queremos acreditar que amanhã é melhor que hoje, e que os momentos se repetirão. A felicidade é um termo sem sentido - ao menos que chamemos de esperança localizada e a projetemos no tempo, seja no passado, seja no futuro, seja no presente.

As memórias num jornal velho ou num livro clássico são os elementos que nos permitem acreditar que há algo que possa ser buscado para aumentar a frequência de momentos de felicidade na vida, seja social, seja profissional ou emocional. Nos rincões sórdidos da história nos deparamos com o pior da nossa natureza. E, veja, em um livro desses descobri que o amor pode surgir genuinamente de um momento ruim e compartilhado. E há felicidade em errar junto, porque o peso é menor.

Lembrar faz sofrer, cria a angústia da contemplação do terror imutável - mas melhor uma memória de nada do que nada de memória.

Comentários

  1. Por que sua melhor escolha foi a de não ser um professor? O que faz um professor afinal? Neste mundo mercantil?

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    1. Eu não consigo me ver ensinando como função final dos meus esforços, o pragmatismo me consome... Preciso fazer alguma coisa com o que sei. É uma limitação minha. Claro, pode ser que superasse minha própria expectativa, ser professor; pode ser que eu fosse ótimo nisso. Mas me vejo em outras coisas, faço melhor do que ensino fazer. Ai não tem jeito: se eu tivesse escolhido ser professor, bom, eu passaria a vida duvidando do que eu mesmo estou ensinando por talvez, quando pisasse fora da sala de aula, pensasse "putz, seria melhor falar de outra forma", ou, "me esqueci desse ou aquele detalhe". Não suporto essa sensação. Fazer é prático, no final do processo, tem que funcionar e, se não funcionar, você tenta de outra forma. Mas nem todas as formas de procurar solução são ensináveis. Criar alguém que sabe pela metade e torcer pra que aprenda o resto é meio torturante. Parece-me um auro-terrorismo psicológico.

      Mas olha, aqui só falo da satisfação do ego através da profissão. Portanto, um professor é como outro profissional qualquer - mão-de-obra trocada por recursos que trazem arroz ã mesa e alguns brinquedos pra adultos. Então justifico que ainda posso procurar algo que me satisfaça dos dois lados e, caso fosse professor, temo que já não tivesse mais a opção.

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  2. Penso as vezes que poderemos findar a vida sem ao menos saber quem somos e o que queremos. Neste sentido, apenas algo que acontece e não descobre seu sentido e propósito, tão fraco que poderia nem ter sequer existido.

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  3. Bom fim de Domingo... Que mais uma semana nos preencha com o seu vazio.

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  4. Bom, dizem, "cada escolha é uma renúncia". Mas, sabe, quanto mais o tempo passa, mais o vazio parece ser parte da escolha, e não da renúncia. Aquele velho "como me tornei quem sou" parece evidente quando considero o histórico da minha vida, e a possibilidade de escolhas parece obsoleta, inexistente. O vazio é, então, uma condição, sociologicamente falando, genética: ora, acreditamos nos valores de nossos ancestrais e na validade deles para nossas próprias vidas como fossem valores extemporâneos.

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  5. Poxa vida!!!! Não conhecia seu blog, nunca li textos seus... Mas olha que surpresa boa, uma felicidade esse momento pra mim, mas duradoura porque tenho boa memória! Encontrar uma retórica maravilhosa nessa leitura, uma reflexão em tempo certo. Sabe quando você pensa tanto em uma coisa que até sonha com ela? Então, foi esse texto pra mim. Sentir um alívio estranho nessas palavras sobre memória e alegrias, apesar de tristes conclusões que você faz, penso que porque seu texto é extremamente realista, e você bastante prático. A mínima esperança da frase final foi cômica, mas era o que eu precisava!

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    1. Obrigado! Que bom que gostou :)

      E, aliás, realismo é necessário.

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