dos calores da vida.

Em um normal dia de verão o suprassumático desejo é refresco. A não ser que haja febre; nesse caso, tudo que se quer é um pouco de compaixão e um cobertor. Ainda que seja fato que o refresco é necessário - ora, o corpo sua, a boca seca - o desejo não é mais aquele. Haverá um dia de verão que alguma criatura afirmará sua necessidade pelo calor, pois o frio lhe consumirá. E essa criatura olhará para o horizonte sabendo que seu desejo naquele momento difere de todas as pessoas que não têm a febre que lhe fora acometida, e saberá que aqueles que a têm da mesma forma são seus aliados em certa medida. Ainda que não se trate de disposições imutáveis, a febre pinta o mundo do febril. E naquele percurso de tempo que a febre está presente a criatura já não é a mesma. Ela pensa diferente, sente e sente-se diferente, veste-se diferente e ama diferentes coisas e pessoas por diferentes motivos, e jamais será a mesma, como o mundo já não é o mesmo - como poderiam? 

Conforme a febre progride e a criatura se vê envolta e permeada por ela, outros sentem a anomalia e o resultado dela no corpo febril, vêem seus fenômenos. A compaixão daqueles que desejam aniquilar a febre da criatura para que possa voltar a sentir calor como todos nós procede como o tentar fazer com que um louco desenlouqueça. Ainda que sejam prejudiciais, a loucura e a febre são novos métodos de ver o mundo. Ainda que em níveis de influência diferentes, também o são a dor excruciante, a paixão avassaladora ou um mero café que falta, dentre muitos outros modos de viver. São análogas, todas essas nuances da vida: o febril quer se aquecer; o que sente a dor quer não mais a sentir, ainda que pregasse a primazia da grande multitude de sentimentos; o rejeitado apaixonado quer o objeto que lhe causa tanto conforto ao ponto em que a sua vontade se prova o inferno; o viciado quer o café e cria hipotética situação na qual sem a droga é impossível funcionar, e por isso não funciona. O febril é doente como todos os outros: ele quer outra coisa que difere de nós, não febris. O febril quer o calor, ainda que aquilo lhe faça mal. Em teoria, a doença difere-se do prazer; mas a que ponto o morrer de tanto se aquecer é o oposto do prazer? Aquilo é o prazer, o diferente é o gozo.

Se todos nós fôssemos doentes, aquele que vivesse mais se tornaria a anomalia... apenas para afirmar que a construção de mundo não é uma constante, mas uma grande explosão de subjetividades concatenadas e relacionadas entre si - de número e possibilidades imensos, ainda que limitadas por natureza -, oriundas da vida, constantes ou não, da qual se participa. O febril vê o mundo como um lugar frio, e se ele vivesse sua vida toda nesse estado, não usaria sungas. Nem as faria. Nem exporia seu corpo pela necessidade de cobri-lo. 

Eis que talvez surjam dez gerações de febris: todos os refrescos seriam abolidos. Nenhuma tendência veranil será permitida ou cortejada. Na décima primeira, ainda que os febris desaparecessem, o verão ainda seria desprezado por inúmeras gerações conseguintes. O mundo já não cultiva o verão, mas por hábito. Os pêlos crescem, os corpos mudarão. Os febris deixarão como legado a nova vida, composta de outras, sim, mas sua própria construção delas.

A vida que se sente de acordo com as conformidades temporais diferem de qualquer outra. Aquele que necessita de calor sofrerá caso esse lhe seja negado. Mas ao curar-se passará pela provação e repousará num estado em que  febre não lhe consumirá, e o prazer do não sentir nada será o novo parâmetro, será melhor, menos eufórico, mais normal. 

Assim como todos os outros exemplares, a febre que consome deve ser combatida - certo?

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