Da predisposição ao engodo

Sempre se faz necessário apontar o quão frágil a vida é. Pois o farei novamente. As escolhas que fazemos (e eu percebo, claro, a notória repetição de mais do mesmo aqui) definem o que vamos passar no minuto seguinte – se não na próxima hora, mês, anos ou vida toda. E, portanto, se há alguma definição de vida aqui, ela é puramente baseada nas escolhas que fazemos – vida, aquela fina camada de gelo pela qual caminhamos dia após dia, e as consequências do quão forte pisamos nessa camada, e o quanto estamos dispostos a fazer dela nossa casa, ou, ainda, se por ventura estamos preparados para nadar no lago congelante que a preparou e suporta. O fato é que, em momento algum, percebemos o quanto ela é pura e sem sentido. E o quanto conjecturamos sobre ela, sobre esse suposto sentido. Ora, ela é de fato só uma corrente mortífera sobre a estaticidade aparente das coisas; sem ela, pois, jamais seriam possíveis e, de mesmo modo, necessárias, as capacidades que temos em nos enganar sinceramente como fazemos. 

O sentido da vida esvai-se como uma imensa avalanche quando tomamos, pois, escolhas erradas – como brincar excessivamente sobre o gelo – se é a perda desse sentido que pretendemos evitar em primeira instância. Quanto tempo esse gelo demoraria para derreter ou trincar se ficássemos parados? Quantos pulos e gargalhadas e quanto tempo sobre o mesmo lugar somos permitidos a ter antes que rache sob nossos pés? Ainda, quantos de nós somos capazes de resistir à quebra e nadar sob ele e sobreviver para contar? Pois, uma vez trincado, sempre será frágil; de mesmo modo, quando quebrar, não poderá ser consertado, e o destino é o fundo do lago. Quanto tempo somos capazes de fazer isso antes que pereçamos sob a pureza da vida?

Curiosamente há, sobre essa corrente eterna e sem sentido – que esmaga aquele que, fraco, toma contato consigo, ou prepara aquele que é forte e o mostra que é limitado e que, apesar de ser forte, ainda assim necessita de sair dela para ver o que de proveito pode ser extraído daquela efemeridade cortante – aquela constante. E, ainda assim, não se pode garantir a sanidade do sujeito que passou sob tal teste. A constante, de fato, não existe (é só mais uma querela sobre os universais), mas é sobre a qual criamos nossas vidas. A descoberta disso pode ser catastrófica[1]. O gelo fino, essa contraditória constante efêmera, nos diz ser possível um olhar estático e compreensível sobre si – será? Pois seja: sobre o gelo, criamos inconstâncias, supondo que o mundo, o gelo fino, é constante. E o mundo como o vemos nada mais é que a fina camada de gelo e, como bons animais esquecidos, excluímos da equação aquela efemeridade, a corrente sem sentido que a baseia, que a esconde e suporta. Então tomamos o mundo como aquele playground de regras por descobrir do qual nossas verdades serão extraídas – será? No entanto, trazemos para nós a terrível ideia (e não há nada mais terrível) de que somos a única incógnita do mundo, a sua bela inconstância. Pois muito enganados, somos levados a uma crença de que se pode saber a verdade sobre a vida o universo e tudo mais, ao que tudo leva-me a crer que, justamente de forma oposta, ela é necessariamente desprovida de tudo isso que a ela associamos.

Levando nosso esquecimento e nossa presunção em conta, o que de sentido existe aí? Em última análise nos assemelhamos mais a um camaleão do que a um intelecto criador, ou ainda, à definição clássica de homem, a dizer, ser racional. O que seria, pois, um intelecto criador? O que se há de criar, se não uma ficção e métodos escolhidos dentre tantos possíveis outros e, a partir disso, confeccionar uma máquina que funcione sobre essa massa de regras fictícias? Ora, não é diferente de um menino que inventa as regras do próprio jogo para sentir-se superior sobre aquilo e sobre aqueles que assim ainda não fizeram. Quando, portanto, toma o jogo por complicado ou impossível, facilita-o por adaptá-lo a si. Por onde começamos, que injúria! Se adaptarmos o mundo a nós, o mundo deixa de ser mundo, e torna-se "nós", ou o que vemos enquanto espécie, sobre o mundo. Este, em essência, não possui nada em si além da inconstância da qual corremos desesperadamente como crianças assustadas. Se, por outro lado, cremos na capacidade de adaptação do intelecto ao mundo, nada somos portanto além de camaleões que, da mesma maneira, adaptam-se ao meio para que este não se torne nocivo ou hostil e, então, chamamos de “verdade” nossa própria ludibriação. Então, ou somos levados a reproduzir o mundo a nós próprios amparados pela memória daquilo que recebemos do mundo e interpretamos da forma possível (e, portanto, criação própria, e não do mundo propriamente dito), ou somos levados a crer em nossa incapacidade física sobre outros animais e, para sobrevivência, sobre nós foi infligida a necessidade de implementação da ferramenta da razão, que nos faz adaptar e contornar situações que venham a ser nocivas e hostis (de forma mais elaborada que qualquer adaptação primitiva mas que, em princípio, mostra-se melhor somente pela complexidade, e não pela intenção, que é sempre a mesma, resistir). Em todo caso, onde está a verdade? Claramente, não parece estar aqui em nenhum momento.

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[1] Uma coisa é pesarmos sobre isso; ora, conjecturamos sobre o sentido de nossas vidas constantemente. Mas, em momento algum deixamos de fazer aquilo com o qual estamos habituados, a rotina, modos definidos de pensamento, etc. O problema mora na internalização, na consciência – não só racional, mas corporal, fisiológica – de que o mundo e qualquer coisa que criamos sobre ele não tem sentido, não é necessário e não estará lá eternamente – seja isso verdade ou não. A “loucura” ou “insanidade” humana expressa bem essa condição. Mas talvez seja insano de nossa parte acharmos que tudo isso pode ser verdade em algum momento, sendo por natureza auto enganados. 

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