frederico.

Insônia. As noites mal dormidas, dividido entre realidade e sonho. A realidade deixa de ser algo palpável; torna-se, pois, uma coleção de flashes aleatórios e desconexos. Os sonhos, curtos e agradáveis, embelezam essa doentia transição com mais coisas impalpáveis. A cabeça dói depois de um tempo, o corpo começa a não descansar como deveria, e a face deixa de expressar saúde, apesar de, até onde se lembra, tem-se comido bem. A face alongada nunca ficara tão pálida, o corpo já não fica mais ereto, os ânimos inexistem, com os amigos já não tem mais contato. A vida sistematizada e pontual já não tem mais sentido; na verdade, nunca o teve, mas fazia sentido em algum momento por algum motivo. Dormir é uma coisa tão simples, a gente nunca percebe o quão ruim é perder as coisas simples e necessárias.

Frederico, 32 anos e três dias, vendedor malsucedido de seguros de carros, doador de órgãos, membro adepto mas não praticante do greenpeace e inquilino de uma kitchenete terrivelmente desorganizada e cara. Ele sabia do seus problemas, só não sabia de qualquer que fosse uma possível solução. Aliás, sabia de todos os problemas de sua vida, só não tinha os culhões para mudá-la. Apesar de tudo, Frederico sempre foi observador. Há sete meses e dezoito dias, no entanto, que Frederico não dorme mais do que uma hora por noite. Até agora, esse herói do subúrbio paulistano é só mais um Fred, mais um inimigo a si próprio.

As coisas não acontecem de repente. Principalmente, não mudam de repente, espontaneamente. As maiores mudanças do mundo sempre surgiram pela necessidade, apesar das necessidades serem, quase sempre, baseadas em micro interesses. De qualquer forma, Frederico tinha um interesse e uma necessidade que movia esse interesse. No entanto, como dito, era inerte. Mas Frederico perdeu a noção da realidade. Frederico já não é mais aquele Frederico que amava a todos os seus familiares por serem seus parentes. Nem aquele empregado submisso que ouve reclamações desmedidas por motivos irreais. Ou aquele ativista que manda dinheiro suado para que outros insômnes mimados atirem pedras em outras pessoas porque acham que vão mudar o mundo por isso. Agora, na casa de Frederico, só existe a cama e um desejo. O de dormir. Frederico não consegue dormir. Frederico está no automático há meses. Portanto, Frederico precisa fazer algo a respeito. Frederico não consegue pensar em nada além disso. Frederico é uma bomba-relógio prestes a explodir.

Um dia desses, comuns, incapaz de claramente definir a realidade, Frederico surta. Frederico pede demissão. Frederico sai da kitchenete. Frederico cancela a assinatura do greenpeace, sua inscrição de doador de órgãos e sua TV a cabo. Frederico vende suas coisas a preço simbólico. Frederico enfrenta fisicamente, e curiosamente ganha, de seu vizinho que chutava seu cachorro que, certa vez fazendo o mesmo, o fez não andar por semanas. Frederico acorda de vez para que possa viver, para que possa dormir. Frederico agora não precisa mais ouvir reclamações gratuitas, não precisa mais aderir a nada pra que o defina, nem a ninguém que o represente, ainda que já tenha sido definido e representado. Frederico concluiu que a liberdade não está na possibilidade de escolha, mas, sim, na capacidade de escolher o melhor dentre as possibilidades que a vida lhe deu, e que ainda lhe são vastas. A vida de Frederico mudou. Frederico, num acesso de loucura e contato com a parte insana e desmedida da realidade indistinta do sonho, finalmente viu o que precisava fazer com a clareza que a vigília não permitiu.

Faz uma semana que Frederico dorme como um bebê. Exatamente uma semana depois de deixar seus problemas de lado. Frederico agora quer ser músico, fruto de uma infância curiosa com as cordas. Frederico não passa mais gel no cabelo e flertou com a moça bonita da livraria que sempre lhe agradou enquanto pagava pelos livros do vestibular. Frederico faz bicos de professor particular com os dons matemáticos que cultivou ao longo  de sua vida de segurador. Frederico passou a alimentar suas necessidades e, apesar da falta de hábito quanto a isso, Frederico tem se saído muito bem. Frederico alugou um quarto e agora estuda nas horas vagas,e trabalha incansavelmente porque gosta do que faz. Frederico cresceu. Frederico precisou passar pelo inferno para crescer. Frederico percebe que não há problema em um pouco de dor, porque a falta dela é que faz a vida não se definir.

Frederico é meu herói.

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