e depois...

          Acordei ao meio dia. Raios de luz atravessam pela janela atrás de mim, desenhando na parede à minha frente quase que uma face tortuosa. Como de instinto, viro de lado e, de um susto, meço com um olho, meio embaçado ainda, as curvas de um volume sob o fino lençol azul bebê que também parcialmente me cobria. Desconcertado, procuro, em vão, na memória, o que acontecera comigo. Levantei-me e pisei numa poça de urina ao lado da cama, e detesto ter que imaginar de onde ela veio, então não vou imaginar (qualquer hipótese é ruim). De pontas de pé, saí coletando minhas roupas e fui em direção ao que me parecia ser um banheiro, depositando num banho a esperança de me lembrar, com um certo pânico adolescente quanto à resposta.

          Ligo o chuveiro e nada, nenhuma gota. Percebi que minhas pernas doíam, meu abdômen também, por causa da contração de irritação que isso me trouxe. O espelho manchado pela preguiça de molhá-lo quando escovaram os dentes num passado próximo me dava uma dica de onde eu estava, numa figura genérica. Essa sensação de desprazer, descontinuidade e loucura me irritam desde sempre; confesso ter um perfil um tanto intolerável quanto a isso, e tenho plena consciência disso... diria que gosto. O único trunfo aqui era minha face jovem e meus dedos hábeis da noite anterior, prévia a tudo isso. O que faço não é profissão, mas é consequência de um hábito, e quando o hábito é frequente e te rende dinheiro, é uma profissão. E esse hábito me fez criar outros e outros, muitos outros, e um deles me fez estar aqui, agora. Não queria estar aqui, pensando agora, por exemplo. Não lembro do por que dessa mancha preta em meu braço, um ponto queimado - cigarro, talvez -, e que acabo de descobrir que está doendo. Não suporto acordar sem minhas cuecas, sem meu livro no criado, sem minhas coisas nos lugares onde as coloquei - nem que seja cada um jogado em um canto do quarto, seria meu canto escolhido para jogar aquilo. Aqui, no entanto, coisas não estão grudadas no teto ainda por falta de um meio barato que as coloque lá, de gravidade invertida ou do caos total, porque aí sim, ali seria legal. Falando em barato, o lugar fede a feijão estragado e a moça é terrivelmente magra. Sério, bulimia style. Mas para os dois aspectos, digo que, à noite, todo gato é pardo.  

          Minha cabeça latejava, e quanto mais esforço fazia para desviar meu olhar das manchas do espelho, mais ela latejava. Lavei meu pé mijado na pia mesmo, e pelas rachaduras no sabão em pedra todo ressecado na saboneteira, diria que já fazia algum tempo que o chuveiro partira desta para uma melhor. Coloquei minhas calças e minha camiseta, e retornei em busca dos meus sapatos, apenas para descobrir que um deles parecia ter sido comido por um cachorro - o que explica a urina de boas-vindas ao novo dia. 
          Sabe, eu me arrependo de ontem. Tecnicamente eu me recordo dos fatos (bom, alguns raros), mas dizê-los é pedir para que eu invente; valeria mais o esforço se eu lhe perguntasse o que você quer ouvir quando me faz essa pergunta. Em todo caso, estar aqui parece o melhor dos cenários e, em última análise, ela não é tão magra assim...tudo bem, é sim - claro que é. Mas tudo ocorreu bem, de qualquer forma, ou pelo menos de acordo com o esperado e com o que eu tenho "controle". Mas eu mataria aquele cachorro, e eu teria ido direto para casa depois do evento, pensando agora. Mas, sabe como é, boys will be boys. As opções deveriam ter sido mais bem exploradas, como sempre deveriam.

          Juro que tentei sair de fininho. Até consegui, na verdade: ela ainda fedia cerveja com vômito quando saí, e calculei pelo menos mais umas oito horas pra que voltasse a si. Mas como o universo não cansa de nos pregar peças, depois do sétimo ou oitavo lance de escadas, lembrei da minha carteira, e de quão puto eu acabara de ficar por lembrar que me esqueci dela. Resmungando, voltei. Aí, quando cheguei no quarto, ela já estava sentada, com uma cara sofrida, pecado. Tudo que eu precisava... Um rosto pálido, cabelos e sobrancelhas negras sobre a pele impecável. Lábios finos, nariz fino, uma beleza maior do que na noite anterior. A maquiagem manchada fazia um olho desenhado logo abaixo de seu olho em sua face esquerda. Puxou o cobertor para se cobrir porque estava só de calcinha, e percebi que aquele feroz e terrificante monstro da noite, indomável, apesar das mil e uma desgraças, que claramente a frequente vida noturna lhe imbuía, poderia ser meiga, pelo menos. Então, pois é, até que os céus partam, ela será meiga para mim, daqui em diante. Eu sou muito previsível.

          Sentei na cama, e ela com seus três olhos em mim. Por que chorava? Não queria perguntar, porque não queria saber a resposta. Na verdade, porque não ia me importar - Mentira, mentira, mentira! Perguntei. Ela chorava, e ainda estava um pouco bêbada. Sentei mais perto e perguntei mais calmamente. Ela escondeu o rosto no travesseiro com manchas de mofo que eu usei para dormir, e soluçava. E eu achando que ia conseguir ir calmamente pra casa. 

          Depois de meia hora (literalmente) tentando acalmá-la, ela saiu de seu estado de soluços para um com menos soluços, ainda que presentes, mas que era possivelmente conversável. Aí, finalmente perguntei. E eu não queria acreditar no que ouvi. Sabia que tinha que ter ficado quieto. Ela queria que eu ficasse porque gostava de mim (?), e que acordou desesperada quando percebeu que eu tinha ido embora. Ó criatura desprezível! Não queria que ela me quisesse, mas ela era meiga. Seu olhar quando me disse isso foi o suficiente para eu abraçá-la. E me arrependi no segundo seguinte, porque ela fedia mesmo, ainda mais de perto, a álcool velho e estômago doente. Disse para se acalmar, que talvez a gente fosse se ver de novo (claro que iria, mas eu a ia evitar até onde desse), que tinha compromisso (num domingo? Que mentira) e que precisava ir mesmo, naquela hora, e que não queria acordá-la - aquela baboseira clássica. Ao que ela me encarou, piscou duas vezes, numa das quais uma lágrima escorreu e desenhou uma lágrima no olho da maquiagem borrada, e me beijou como se não houvesse amanhã. Beleza. Eu, sem reação, não consegui fazer o mesmo. Afastei-me, levantei-me e fui embora. 

          Sabe, existem alguns contratos sociais, tácitos, aos quais a gente tem que se apegar para poder viver bem. Um deles é que eu não estaria num bar à noite se quisesse um relacionamento sério com alguém no dia seguinte. Principalmente, não quereria um que começasse numa casa daquelas do Trainspotting. E que eu não precisava consolar alguém também, e só nesse último ela já tinha aproveitado da cota extra da minha estadia, covarde que sou. Essas coisas variam, claro, de lugar e de época, mas no meu caso e contexto, sabia como viver com as regras, ainda que soubesse que elas são inexplicáveis. E gostava das regras por vários motivos; um deles é porque não queria precisar de alguém, e essa regra me dava liberdade total quanto ao assunto. Enquanto fechava a porta atrás de mim, descobri que eu nunca havia feito uma coisa tão bem feita quanto sair dali naquela hora. Contei os degraus, mas não lembro agora, uns trinta e pouco. Os números colidiam com meus pensamentos de satisfação de dirigir-me à minha casa, junto com uma dúvida de onde estava. No patamar do pé da escada, cruzei um rapaz. Eu andava de cabeça baixa, não vi seu rosto, nem estatura, nem nada demais. Vi, no entanto, seu cachorro, grande e com cara de violento mas de uma raça que sabe-se lá qual era, numa coleira vermelha. Bom dia. Então ouço os passos pararem logo atrás de mim, como se eles tivessem sido ofendidos pelo que disse, e ouço um grito que me ofendia, algo como desaforo, e paro. Sem me virar, sinto o grito e os passos virem em conjunto, como uma gangue de rua de um homem só. Mas a gente corre quando é uma gangue de rua vindo em sua direção. Aliás, não sei porque não corri. O caso é que então me virei, e nada mais vem à mente, a não ser um par de olhos irritados sem uma face e um punho fechado.

          Acordei pouco tempo depois, jogado no mesmo chão do pé da escada, com sangue à minha volta, em uma grande quantidade. Minha perna esquerda tinha uma mordida de cachorro, com o sangue estancado. Mancando, levantei e fui para casa.


Nada é de graça, aparentemente.

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