uma página de memorando


Grita o pequeno jornaleiro, ao longe:
- "Extra, extra! Dama da alta sociedade dispara contra a cabeça do marido!"
E o povo em alvoroço corre para comprar o ocorrido.
- Estamos ao Deus dará, comadre! - balbucia a beata para a outra, enquanto fazem ambas três sinais da cruz cada, com faces de tragédia grega, olhando para o jornal - Pois veja que barbárie! Onde está escrito?!
Em menos de minuto o menino vende todos os exemplares e sai deveras feliz.

Lembro-me bem. Naquela manhã aquilo foi assunto geral na rua, na igreja, na escola. Até o professor comentou, devidamente empunhando a cópia que adquirira (sendo um dos primeiros a comprar; enfatizava isso com um tom ridículo) e dizia que conhecia a filha do casal, e, portanto podia dizer-lhes os motivos ou a falta deles pra tudo aquilo ter acontecido... Manhã perdida, digo-lhes. Na volta pra casa, os burburinhos nas esquinas eram sobre o ocorrido; garis, padeiros, guardas... Quão grande tem que ser um evento pra todos se interessarem sobre?

Cheguei em casa de mau humor, por causa disso. Mas, como crianças de quatorze anos não têm mau humor – ou direito a qualquer humor - eu simplesmente cheguei em casa. Meu pai, no horário de seu almoço - de bom humor - veio pra casa nos contar a notícia da hora e fazer sobre ela suas próprias observações:

- Mas tem que morrer mesmo! - dando tapas com as costas das mãos no jornal, a ponto de quase rasgá-lo - Esse cretino costumava me olhar de rabo de olho quando passava todo pomposo em seu carro lá no armazém. Pff! Ganhei meu dia com essa notícia.
- Larga mão de falar asneira, homem! - gritava minha mãe, com sua voz rasgada, a cada cinco minutos de sentenças de raiva bem-humorada que meu pai profanava juntamente com um chacoalhar horizontal de cabeça, como a negar algo. Acredito que minha mãe, além de eu mesmo, tenha sido a única pessoa que conhecia na época até então a não dar a mínima ao assunto quando este ocorreu.

Meu pai, por sua vez, assumia que todos que tivessem mais do que ele eram “burgueses ignorantes que não sabiam viver”. Fazia pouco de política (assim como quase toda a cidade), não era religioso e mal se importava com a própria família. E era mal-educado conosco, me batia freqüentemente com qualquer objeto capaz de traumatizar uma criança, sem motivo aparente. Juntamente com minha mãe - omissa, beata e de poucas palavras, mas de incrível capacidade de me bater exatamente igual a meu pai - e eu, o sem-personalidade, que nada falava e nada podia dizer.

Na semana seguinte, tudo que ouvi foram teorias e comentários sobre o ocorrido. O país estava passando por um golpe militar, a política matando e exilando, deformando. Mas o que meu vizinho mais queria saber, do fundo do seu coração, era o por que a dama havia feito aquilo. Ninguém mais sabia falar de nada além disso; até meu pai exibia seus conheceres sobre o assunto toda vez que alguém vinha em casa, ou quando íamos a um local público.

Nessa mesma semana, uma das seis irmãs de minha mãe faleceu, o coração falhou. O funeral foi num sábado negro, que chuviscava sobre os telhados, chapéus, guarda-chuvas e jornais velhos. Durante a reza do terço, à beira do caixão, pessoas discutiam o julgamento da viúva. Os entes mais próximos secavam suas lágrimas com a foto do moribundo no jornal da semana passada. Não paravam! Nem no funeral cessavam os burburinhos sobre a morte do infeliz. Mesmo minha mãe, que não se manifestara de modo algum sobre os rumores e fatos que envolviam a morte do gentleman, naquela ocasião, e não mais do que de repente, parecia se importar mais com o tamanho do estrago do tiro que a dama disparou do que com a alma de sua irmã, fato que me chocou à primeira vista. Após cinco intermináveis horas naquele lugar, resolveram enterrar a pobre coitada na terra úmida e fria. Até seus filhos alternavam entre fofoca e choro, conforme saíam e entravam na salinha fúnebre. Seu marido já sentia a fome bater no estômago, não queria enterrar a esposa.

Depois do enterro, o povo dispersou-se, cada qual com seu jornal. Eu e os meus voltamos pra casa, numa longa caminhada na chuva. Eu só pensava na janta logo mais, roía os dedos e brincava com as poças d'água da estrada esburacada. Meu pai tinha uma cara de nostálgico, não falou o caminho todo, andava com as duas mãos nos bolsos e chutava qualquer pedra que encontrasse. Minha mãe tinha uma cara de espanto que se fixou com ela pelo menos uma semana depois daquilo, e segurava uma mão com a outra contra o peito, segurando um rosário; rezava baixinho, chorava de leve, molhando as mãos. Não me arrisquei a perguntar como ela se sentia, como tentei fazer algumas vezes; preferia viver só com meus problemas “inexistentes”. Até porque, no final das contas, eu era - assim como eles mesmos - sozinho mesmo.

Em casa, ensopados, eu agradecia a não-sei-o-quê, porque tudo havia terminado. Meu pai foi para o quarto, tirando as botas e a camisa molhada, com movimentos de alívio, como os de alguém que acabou de passar por mais uma de suas infinitas obrigações e estava prestes a ter seu merecido descanso. Minha mãe, sem mesmo tirar seus sapatos molhados, se dirigiu ao fogão e, com a cabeça baixa, esquentou a comida do almoço.

No entanto, de súbito, minha mãe começou a chorar desesperadamente, soluçava. Momento de mudanças de atitude, aquela tarde, e chocante, aliás. Não havia notado o quanto ela se desesperou com o assunto; talvez nunca tenha chegado a conhecê-la bem. Fato: ela tinha se desmontado assim que pisou na segurança e na sua costumeira solidão de casa. Meu pai, como de costume, não deu a mínima, e a ordenou a se calar, dentro de seu direito de marido, enquanto enchia seu prato de ferro revestido de cerâmica branca com feijão, arroz e carne cozida até não caber mais. Precebi então que minha mãe passou a dar a atenção ao caso alheio porque não queria enfrentar a própria realidade, algo que preenchesse o desespero que ela tinha preso em sua alma, algo que parecia acontecer com todo mundo naquele fim de mundo: o burburinho, o caos gerado pelo assunto sem sentido alheio parecia muito bem o analgésico para a própria dor de cabeça. Não dava atenção ao caso, mas o fez sobre o último leito de minha tia. Mas sempre se pode achar uma dor mais forte do que o remédio, e ao chegar onde ela poderia ser sozinha de novo, debulhou-se em lágrimas. E assumo que assim era também para o resto do povo: precisavam de um substituto barato para o sofrimento dos dias; remediar a dor ao invés de eliminar a causa. Remoer o presente alheio para que a dor dos próprios dias lhe fossem mais amenas, assim como a televisão agora, nesses tempos de modernidade e justiça que nos cerca.

Mas, apesar das mudanças leves, isso era o nosso normal. Eu vejo isso como sendo completamente como tudo - de acordo com o histórico - deveria ser. Apesar de que, olhando dessa forma, qualquer situação possa ser normal, ela era a mais plausível e, de longe, a mais comum. Nesse momento, com o choro rasgado de minha mãe e o caráter arrogante de meu pai, portanto, me senti em casa - muito mais do que nas semanas que se passaram, com todo o alvoroço que me irritava, com fofocas destrambelhadas e murmúrios que me chamavam a atenção e que, por vezes, me atrapalhava o sono, quando bebiam cachaça na nossa varanda até o sol raiar. Meu pai no seu canto, fazendo ruídos sem nexo com sua viola quase sempre desafinada, minha mãe derramando lágrimas sobre suas toalhas de crochê ou tricô (nunca soube diferenciar essas duas artes), que fazia todas as tardes sem nunca as terminar, nem ao menos ver os resultados de tanto trabalho. Ela chorosa, ele brigão. Eu? Não sei dizer. Tenho essas memórias como eu sendo um ser assexuado, incapaz de sentir dor, totalmente ignorado/ignorante e completamente robótico, concebido como um saco de carne que podia ser maltratado e que deveria ser funcinal em prol à preguiça dos seus queridos progenitores.


Ps.: Todas as concepções opinativas que nestas inseri foram concepções futuras sobre o que suponho que sentia na época; portanto, digo-lhes, pode ser que todas são meramente considerações atuais sobre memórias velhas, e peço que não me culpem se assim elas forem; são mais sensatas atualmente, eu espero. Não sei se estão certas de qualquer forma. Tudo que sei é que assim me sinto, agora que todos estão mortos e que todas as verdades e inverdades foram enterradas no tempo, e devem bastar. Porém, a carne morre, mas a hipocrisia é elementar e imortal; hereditária, até. Cabe, portanto, a quem ler estas memórias, inverossímeis ou não, a dar-lhes sentido.  

Comentários

  1. ItZak Raaaaaabin!!!!!!!!!!!!!!!!!
    Parabéns my brody!

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  2. Neste caso me remeto diretamente ao "fazer" do escritor e suas diversas nuances. Posso encontrar de maneira significativa - isto por que fui acometido diretamente - com a escrita visceral do escritor que viveu! Tenho o pleno sentimento de que há, in nuce, uma obra por vir. Espero que este sentimento não te abandone e junto com ele o árduo trabalho da sistematização! Abraços de um velho e singelo amigo. Benedetti.

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