Das observações desnecessárias acerca da vida,

Quando eu era criança, o pé da Serra da Mantiqueira era meu lar. E para uma criança, seu lar é, basicamente, tudo que se tem. "A serra é do meu pai", eu dizia. Não por opção, não por querer manter a pureza daquilo e, melhor ainda, não por possessividade; simplesmente é tudo o que se conhece, e se possui o que se conhece, eu acho. Afinal, por que a serra não podia ser do meu pai? Eu era dali, até onde podia lembrar, ele também. Conhecia a serra, apesar de só olhar pra ela; achava que o azul que brotava de manhã era porque era uma grande pedra lisa e, pelo mesmo motivo, ficava escura de noite. De lá, segundo meus pais, saíam os lagartos da mata, as onças pintadas, o bicho-papão e toda essa estirpe de criaturas irracionais. Mas a onça, ah, a onça; até porque nunca tinha visto uma onça pintada, portanto ela era a mais medonha; me dava mais medo do que o bicho-papão, por exemplo. Fui desenvolvendo, poranto, o medo da serra; parecia muito misteriosa e muito distante, inalcançável; principalmente quando eu entrei na mata que cobria a serra pela primeira vez. Por exemplo, não conseguia vê-la quando estava "dentro" dela, e mesmo de dentro era impossível de se ver. O vislumbre de coisas novas, flores novas e até bichos novos me davam arrepios. Eu tinha medo, da forma que uma criança tinha que ter medo. E, ainda assim, a serra era tudo que eu conhecia.
Eu brincava no rio que passava por ali, perto de casa, o Piracuama, ou "cova dos peixes" em Tupi-Guarani, sendo, boa parte da minha infância, o único rio que existia. Assim como a serra era a única serra e a maior coisa que existia; minha casa era a melhor que existia, minha mãe era a mais legal que existia, meu pai era o mais divertido que existia, meu irmão o mais sacana que existia e tantas coisas mais - as minhas coisas - eram tudo. Meus primos, assim como meus tios, por existirem muitos deles, deixaram de serem tão especiais logo cedo, mas todos eles se faziam medonhos. Como prevê-los? Era difícil interagir, portanto não interagia. O mundo que eu conhecia, por sua vez, se seguiu deixando de ser especial à medida que todo mundo passava pelos mesmos processos que eu, criança e inocente, e me deparava com assuntos e atitudes com as quais eu não era acostumado, e que me eram tabus, literalmente falando; o primeiro beijo que meu primo, com o qual eu sempre estava e que compartilhava os momentos de escola, deu em uma menina. Éramos crianças; aquilo não teve impacto neles, tenho quase certeza. Mas, em mim - e carrego esse fardo até hoje - o impacto foi e é grande. O quanto me custa beijar alguém pela primeira vez é praticamente impossível de descrever. Beijo, sinal de carinho máximo para mim, acaba por ser a corriqueiro. Meus valores são meus. Meu primeiro beijo foi a maior briga interna que eu já tive até hoje.

Nem apresentar seminários na escola ou falar na igreja de domingos à tarde me deram tanto calafrios quanto isso.

Minha vida pré-adolescente foi banal. Tinha garotas, mas não tocava nelas. Ia à escola como um trabalhador descontente do campo vai ao trabalho; precisava das notas mas não gostava do que aprendia. Do que aquilo valia, aprendi a não perguntar. Até o dia no qual aprendi a perguntar. Hoje, pergunto. Minha vida social, por sua vez, ao invés de aparecer, simplesmente não surgiu, e não sentia falta dela; não se sente falta do que não se tem, em primeiro lugar. Interessante é como eu cogito minha vida pós-infância como inteiramente intelectual, como se, em algum ponto no meio do caminho do meu hoje e do antes eu tenha tropeçado na realidade e caído dentro de mim mesmo; agora não consigo sair. Tenho atualmente, no entanto, uma vida socialmente "ativa", mas não a vivo por completo, se é que há uma vida social por completo. Estou na universidade; momento em que muitas pessoas se definem como o que querem ser, da forma que querem ser e se dizem únicos e capazes de fazer a diferença e deixam-se arrastar pelas idéias revolucionárias dos outros macacos pensadores e se perdem, mais cedo ou mais tarde, acabam mortas por suas convicções, ou com elas imbuídas na alma sem uma fecundação terminada. Ou que viram advogados e prezam tudo o que a vida lhes proporcionam no limite do comprável; até porque a vida não é ruim com dinheiro, não é? Mas também acaba-se morto. Pois é, queria ser advogado também. Porém, a vida que vale a pena se mostrou mas aprazível e, culturalmente me dá mais prazer.

Penso, sinceramente, se errei; se deveria ter feito outra coisa. Aí penso que, se errei com relação a mim mesmo e minhas vontades, errei com base nos critérios próprios que, por serem próprios, fui eu que, em tese, inventei; portanto, são meus e se digo que são meus, se os disser, então, como mutáveis, a mutação lhe é regra aplicável e, portanto, de modo algum, absurda e, de mesmo modo, é plausível. E se errei, foi por tentativa e erro, o que torna o erro bem menor e, nesse caso, ainda é produtivo. Não que eu não sinta prazer no que faço agora, mesmo porque eu tenho um prazer imenso pela sabedoria, porém não sei se deveria buscar o prazer máximo no que fazer; se assim fosse, deveria ter uma lutheria, muitos livros, uma central de informática e jogos, cheia de instrumentos musicais, as mulheres que amo e bastante comida. Ou ser gogo-boy.

Por quê escrevi tudo isso? Porque sou um animal sentimental e me apego facilmente às coisas. E meu pensamento é coisa. Ou, também, porque eu estou nostálgico. Ou porque... não sei.

Comentários

  1. Adorei! E me identifiquei em vários pontos! Você realmente tem um dom incrível para escrever!

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  2. não foi eu que escrevi isso viu

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  3. Muito obrigado, anônimo #1, gosto deveras muito de você! E eu sei que não foi você, anônimo #2 iUiuHAEUIheaI

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