O almoço na casa do Filósofo

     Domingo é dia de descanso, de uma boa pescaria, de levar o cachorro pra passear e, é claro, dia do almoço em família. Fui convidado para um almoço na casa de um amigo, um filósofo.
     Talvez assuste o leitor o fato de dedicar meu tempo a relatar o que parece (e é aí que está a diferença) um almoço comum, como o de qualquer outra família. Oras, o almoço na casa de um filósofo não pode ser igual a qualquer outro almoço na casa de não–filósofos; há sempre um requinte especial.
    Família é sempre família. Uma mulher mandona, uma sogra moralista, uma cunhada birrenta, agregados estranhos e um filho que não nos deixa em paz. Quiçá um cachorro barulhento.
     Na casa do filosofo não é diferente, mas o ‘algo a mais’, o toque de sutileza que diferencia um almoço com um filosofo está num pequeno detalhe: o olhar do filósofo.

     Deparei-me observando os olhos do filósofo, sempre espreitando e analisando seu redor, procurando não estar nem ali. Se por fora parece apreensivo, atento ao filho, alheio aos reclames do pai e solicito aos pedidos da mulher, por dentro ele se ri. Ri como um menino brincalhão que está sempre disposto a mandar tudo para os altos e correr para qualquer montanha, e como aqui não há montanhas, foge para dentro de si mesmo - o lugar mais montanhoso que conhece -.

     Gosto de almoçar com o filósofo, e de beber com ele. Como em todo almoço em família não pode faltar a hipocrisia que nos une e mantém nossos laços. O que mais me incomoda, e creio que também ao filósofo, é o velho discurso em prol da virtude, aquela mania aristotélica de virtudes e vícios. O fato é que a virtude apodrece em meio a ruínas gregas; não vejo entre nós nenhum homem grego, e temos de lembrar sempre que são os vícios que nos humanizam, mas parece que há sempre um juízo de valor dos vícios – “seu vício é pior do que o meu” – vociferam sobre a mesa os pequenos hipócritas. Sim, sua pequenez se estende até em sua hipocrisia.

     Mas não quero falar de pessoas pequenas, dessas que acham que estão contribuindo para alguma causa maior do que todos nós ou salvando o planeta das atrocidades humanas. Mentira. Não é porque você recicla o lixo (auge da política "legal" de bem estar social) ou porque escova os dentes com a torneira fechada que você vai deixar de ser um pequeno hipócrita; fazendo isso só vai aumentar sua pequenez. Também não adianta querer se mover em prol das crianças da África ou querer ajudar um panda, isso é ridículo.
     Quero falar de pessoas grandes, como o filósofo. Pessoas que não querem um mundo melhor, assim como eu, ou uma juventude sem vícios - onde já se viu uma juventude sem vícios? - não quero falsos moralistas adeptos de uma ‘geração saúde’ (mais um produto da mídia) que saem pra caminhar domingo de manhã, antes do churrasco, porque caminhar é "do bem", uma coisa "super legal". Um mundo melhor deve ser uma chatice. A idéia de um céu sempre me pareceu uma coisa muito chata e sem sal.
     O filósofo, ao contrário, compartilha de minhas idéias, e por isso é bom estar ao seu lado. Por isso me retiro de domingo e me escondo na casa do filósofo. Lá também nos escondemos juntos, nem que seja à mesa repleta de gente hipócrita.

     Lembro de certa vez em que ele fez uma indagação retórica: “O que somos nós se não pequenos vícios? Não somos animais de saúde! O que me torna humano são meus vícios e meus pecados, por isso estou sempre doente e torto em meu canto.”

     O filho do filósofo não tem o mesmo olhar, mas tem o mesmo espírito: basta ouvir a palavra “Não!”. Pronto, Lá vai ele fazendo um furacão por onde passa, deixando a casa de pernas pro ar e a mãe de cabelo em pé. Eu olho pra ele, e ele ri pra mim. É como se tivéssemos um pacto.

     Mas é melhor parar por aqui, antes que o bebê acorde.

Por Sr. Rudah Silva.

Comentários

  1. Essa parte "pessoas pequenas, dessas que acham que estão contribuindo para alguma causa maior do que todos nós ou salvando o planeta das atrocidades humanas", faz-me lembra algumas pessoas.

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