pedra sobre pedra sobre pedra...

Trinta anos. Nem sei por onde começar. Chego aos trinta com muitas ressalvas, muitas mesmo. Comecemos pela óbvia, o flashback.

Primeiro: não acredite em histórias pré-fabricadas. Em todas as etapas da minha vida tive alguém presunçoso e confiante de quem ouvi conselhos que exemplificassem a melhor forma de viver aquela etapa da vida ou que reafirmasse constância nas etapas subsequentes. Não são verdades, esses contos, e são, no máximo, aproximações elegantes, justificadas tão-somente pelo acaso. Lembre-se: bons vendedores vendem ideias, não produtos. 

Tenho uma proposta: senhor leitor, meu velho e incessante amigo, pare e pense por cinco minutos: faça perguntas que te envergonham profundamente - seja honesto com você. Sem uma palavra sair de sua boca, questione tudo que usa como critério para sua vida, desde a fundação quanto a cor das janelas da sua construção moral. Esqueça o quão moldado pela presença dos outros você é e pense no que você faria caso não existisse ninguém mais. Trinta anos é muito tempo para não fazê-las, essas perguntas.

Acima de tudo, não acredite, senhor leitor, no que te dizem. Brigue com eles, por favor. Eu só peço isso. 

Quero e vou dizer que demorei alguns meses para começar a escrever sobre essa virada na vida que são os meus trinta anos. Os seus, não sei quantos são nem se são relevantes, mas são mais do que você deveria esperar, meu jovem. Eu, bom, tive mais coisa do que eu imaginei que teria na mente, acumulado em filas para processar. Não espere, aja.

Veja, comecei a escrever essas memórias há tanto tempo...  e não é a primeira vez que constato isso aqui. Hoje é de pequena ou nenhuma importância a opinião enviesada alheia. Ainda importa, claro, se eu precisar genuinamente de algo de alguém, e é o caso, frequentemente. Você, leitor, que um dia achei que ia ser um pilar inquebrável na minha vida, você que achei que iria me salvar, que teria um papel importante no desenrolar dos fatos, me decepcionou. Mas ainda há esperança, mesmo sem você, mesmo sozinho. Aliás, espero que seja sem você. Sem vocês, Frederico, José, João, todos os outros. Todos os meus interlocutores, divisões do mesmo ego, que surgiram aqui ao longo desses anos, todos os meus demônios projetados nos diferentes teclados porque procuraram alguma forma de me maltratar longe daqui, em outros rincões. Todos aqueles que me lêem melhor do que eu consigo.

Houve tempos em que eu acreditei num bêbado qualquer que dizia que as mesmas palavras que me trariam a ferida me curariam delas, se eu acreditasse de verdade nisso. Em vigor da juventude, não acredito que possa expressar com fidelidade o quanto acreditei em você; aliás, dei créditos a muitos bêbados apaixonantes. Acreditei neles todos, mas não percebi que eles morreram, porque sempre morrem, em todos os sentidos - morreram bem antes do que eu pudesse avaliar sua relevância, levando consigo a essência de um significado entre outros mil que nunca fizeram  o sentido que eu procuro. Pois era só mais uma forma de ver o mundo, e eu acreditei na dele sem justificativa nenhuma. Eu deveria ter criado a minha. 

Recentemente me vi constatando à minha consciência do fato de que eu era imbecil demais para ter consciência do quão imbecil eu era. Talvez ainda seja, mas seja imbecil demais para constatar isso aqui. Só o tempo dirá. Ou talvez eu tenha vergonha de admitir minha estupidez. Ainda, talvez daqui a dez anos eu veja isso novamente acontecendo, e me envergonhe; e entre todas as coisas das quais nunca tive coragem de fazer, ainda acho que ficar parado é o erro mais pétreo, mais crasso, da vida. E, veja, mesmo sabendo que uma pedra parada junta limbo (sim, sempre soube disso), ainda fiquei parado. Porque você não me deixou ir, e eu te desprezo por isso.   

É importante, senhor leitor, mau caráter que é, que saiba que antes de criticar esses meus processos e abominá-los como sempre fez, gostaria de te interromper e dizer que sei do que estou falando. Sou um adulto agora e, apesar de ainda não saber falar ao telefone nem preencher relatos, sei do que estou falando. Pode ser que eu seja realmente mais imbecil do que penso que sou, mas isso é a minha cruz ao mesmo passo que é minha espada.   

Cartas suicidas têm um jeito bem peculiar de se apresentarem, não é mesmo? Algumas carregam evidências literais; outras podem não ser assim. Em geral, suas razões são muito fortes, inspiram curiosidade, são novelísticas. Veja as entrevistas dos sobreviventes dos ataques a Columbine, em 1999. O que os jovens suicidas pensavam, por que atiraram nos colegas? Parecem pequenos confetes no mundo cinza, mesmo que a cor seja só vermelha. No entanto, as coisas do cotidiano me impressionam mais: veja, um diabético tomando uma garrafa de refrigerante é, para todos os fins, suicida; contudo, tem uma jusutificativa carnal que grita silêncios ensurdecedores.   

As mais cruéis destas cartas, bom, escondem decisões poderosíssimas gradualmente diluídas em intervalos arbitrários de tempo.   

Ainda no tópico suicida, juro que tentei viver de acordo com esses formatos da vida moderna. Tentei usar templates; tentei criar meu próprio template; tentei viver sem nenhum; tentei fazer filosofia. Tento hoje conquistar um quarto escuro onde a luz não me encontre. Minhas expectativas diminuíram muito quanto ao resultado dos meus esforços e temo que essa seja uma tendência crescente, em direção a um constante declínio. Depois de tantas pequenas conquistas, retorno como um bumerangue à mesma velha mão, esperando o próximo arremesso, torcendo para que o próximo vôo pegue mais vento na subida. Esperando; o que espero, quais sinais? Será que espero por Godot?   

Como já diz o filósofo (se é que disse mesmo): "[d]emore o tempo que for para decidir o que você quer da vida, e depois que decidir não recue ante nenhum pretexto, porque o mundo tentará te dissuadir". Nessa frente, bom, tentaram me dissuadir de coisas que eu escolhi com a certeza imbecil que citei acima e que hoje eu queria que tivessem sido mais convincentes. Hoje, tentam me dissuadir da única luz que vejo, sob premissas e promessas infelizes. Pode ser que o ciclo se repita, mas gosto de acreditar que mais luz bate do lado de cá agora, e que eu consiga separar as coisas, que eu possa julgar  com mais certeza as minhas ações, pelo menos no que trata do que eu espero para meu futuro. Espero ter perspectivas em breve.   

Por fim, ante à contradição ao reforçar aqui que queria que me incluíssem em alguma mentira que nem precisava ser bem contada, acredito que digo isso com o coração bem leve. Pois adoraria hoje acreditar em alguma mentira mais comum. As mentiras nas quais acredito não me trazem conforto e nem são bem contadas. Trazem para você? Se puder, me ensina a dormir bem e a querer o que todo mundo quer com a sinceridade de uma criança.   

Quanto a você, meu querido, não vou deixar passar, não dessa vez.   

Meu leitor, meu leitor, a sua visão é vil. Ela me deixou me apaixonar por você e sua ilusão de controle e quer me agarrar pelas minhas barbas falhas.  Sua noção de realidade é tóxica. Você é a lata de picles nas mãos do pianista faminto, que se recusa a abrir. Você é o que há de errado no mundo, é a falta de esperança; é o homem de bem esperando o futebol com a cerveja na mão em um domingo dormente.  Subitamente, quero criar coragem, mas mais uma vez sonho com tempos idos e nos tempos por vir. Antes era mais fácil pensar em liberdade, mais fácil sair sem olhar para trás. Isso vai ficando difícil com o tempo. E quanto mais tempo acumulamos, mais medrosos somos. Eu morro de medo.   

Quando muito novos, a vida aponta só para uma direção. Depois de um tempo, o progresso sempre estará num meio não definido, com possibilidade de olhar pra ambos os lados do intervalo de tempo. As projeções maltratam tanto quanto os dias que vão se esvaindo da memória, cada um de seu jeito, cada um confirmando que nossa capacidade de lidar conosco é bem limitada. E você se aproveita disso, você cria a bomba-relógio que eu não sei desarmar, faz minha pele coçar, me implanta ideias; você me incentiva a escrever até à uma da manhã de uma terça-feira para dizer que há muito tempo já não aguento mais você. Preciso me livrar dessa sensação. Preciso te tirar de mim.   

Em meio a tantas tentações e dissimuladas certezas, você - sim, você, que já não sei mais como chamar, que considero já chamar sem uma palavra sair de minha boca - vem com essa vontade implacável de me tornar comum. Vem sorrateiro como querendo me pegar desprevinido, como um crocodilo em águas calmas, me espreitando só com os olhos à vista. Não, não serei essa pecinha, não serei espreitado. Posso sofrer o dano que for, mas me tornarei livre de você, custe o que custar, mesmo que seja um braço, mesmo que seja eu inteiro. 

Até lá, sigo firme te excomungando. Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar e maldito seja em seu levantar, maldito [você] em seu sair e maldito [você] em seu entrar. Maldito seja.

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