o ciclo sem fim

             Existiu em um passado não muito distante um pequeno cão. Filho de uma cadela de rua e irmão de mais sete outros cãozinhos, nasceu debaixo de uma caixa de papelão rasgada sob um viaduto de uma esquina qualquer. Quando nasceu, nasceu com uma patinha torta, o que impedia que corresse tão rápido como seus sete irmãozinhos, mas recebeu a atenção e o cuidado daquela matilha desimportante. Foi crescendo, aprendeu a mamar, a andar e a brigar por seu espaço no microcosmo que ele tinha como referência.

Sua mãe, uma cadelinha magra e cheia de feridas e marcas pelo corpo, fruto de uma linhagem já acostumada com as ruas, com seu porte médio e a certeza de uma vida difícil, quase morreu no parto, teve muita dificuldade para voltar a andar, mas nunca deixou suas crias desprotegidas. Enquanto cresciam os filhotinhos, andava com eles pelos arredores torcendo para uma caridade ou outra em comércios ali por perto.

Eram importantes para si mesmos, mas, no esquema geral das coisas, totalmente descartáveis. Um mundo que não é para eles. Esse cãozinho, apesar de desconhecer esse sentimento tão humano, sabia que era difícil conseguir a comida do dia-a-dia, que a fome batia, mas nem sempre alguma coisa viria pra saciá-la. Aprendeu a roubar de lixeiras e sacolas na rua, aprendeu que não poderia ficar ali do lado de sua mãe e irmãos, aprendeu a andar por aí, seguir seu faro.

Deixou sua família de lado, cujos quais nunca mais veria, e saiu numa manhã em uma direção qualquer, andando pelo asfalto, chegando até a ser atropelado em duas ocasiões, mas nada grave. Os anos foram passando, o cãozinho foi endurecendo e, arisco, somente era sociável quando tinha fome e sabia que precisava dedicar atenção a algum daqueles macacos bípedes que lhe jogavam restos. Aprendeu a se virar, vivia cada momento em algum lugar. Efeito colateral de cidade grande, viver nas ruas lhe tornou um animal diferente, manipulador e assustado.

Nunca foi adotado; agora em seus cinco anos de brigas e caminhadas aleatórias por onde o faro lhe levava, se viu caminhando para lugares onde os prédios não eram mais visíveis. E onde os seres bípedes passavam em alta velocidade em caixas sob um chão quente e cinzento. A rodovia era perigosa, ele sabia disso. Ele queria voltar, mas não sabia como; ele queria atravessar, mas se assustava com aquilo. Via restaurantes cheirosos ao longo da sua caminhada teimosa rumo à direção errada e queria visita-los; por hábito, existe sempre uma pessoa bondosa que o alimentaria. Atravessou a rodovia, os carros desviando, barulhos de buzinas dos carros o assustavam mais ainda, apesar de já as conhecer de muitas outras datas.

Conseguiu atravessar, chegou à porta do restaurante, ganhou alguns mimos. Apesar de ser da rua, era um cão bonito, de porte médio, coloração meio avermelhada, pelos brilhosos, apesar de sujos. Isso sempre lhe rendeu mais alimentos, mais carinhos na cabeça, mas nunca um lar. Inadvertidamente usando isso a seu favor, mais uma vez ele conseguiu seus restos, e ali permaneceu por alguns meses, acompanhado de outros dois abandonos. Um desses abandonos, uma cadela de porte um pouco maior, em um dos seus cios, ficou prenha de seus filhotes. Era o ciclo da vida. O ciclo da vida na rua.

Um dia, um rapaz em sua caminhonete passa pelo cão e tenta coletá-lo, sem uma intenção definida. Era um fim de noite e ele estava caminhando pela entrada do restaurante na beira da estrada, longe dos seus recém-amigos e futura cria. Com um pedaço de frango, convence o cão a entrar na carroceria, fecha e anda durante algumas horas. Numa parada subsequente, nosso cão, ao ser alimentado novamente pelo homem, consegue fugir. Porém, é tudo diferente. Está com medo do homem, está com medo do lugar que está longe de onde estava, está com medo ainda dos carros que passam na beira da rodovia. Caminha a noite toda. Encontra outro lugar, pequeno e que não é tão amigável, onde apanha do dono. Decide continuar.

Doze dias caminhando, já faminto, sobrevivendo à base de lixo que por sorte encontrava jogado na beira da estrada, encontra alguns outros cães. Agressivos, espancam nosso cão, com mordidas e pele rasgada, sangue para todos os lados. Um dos seus olhos fica muito machucado e agora já não é tão fácil conseguir comida. Em pelo menos dois outros restaurantes, é maltratado e enxotado. Com fome, sobrevivendo do faro e torcendo para encontrar lixo, recupera seus olhos e de seus ferimentos. Suas marcas continuam.

Continua a caminhar, parece não querer olhar para trás. Queria voltar à sua mãe, queria voltar para seus filhos que devem ter nascido, mas foi vítima do dia-a-dia dos responsáveis pela sua existência. Mas continuava, porque queria existir.

Oito da manhã. O trânsito maior do que normal, caminha pela beira da estrada, ainda procurando outro restaurante de pessoas que lhe tratariam. Tenta atravessar. Um dos carros em alta velocidade não parece se importar, não reduz. Seu corpo é jogado trinta metros adiante. Sua perna é dilacerada, sente seus interiores sujando seus olhos com uma malha fina de líquidos de si mesmo. Sente uma dor que cessa em instantes.

Seu leito de morte, um pequeno pedaço de grama entre os asfaltos de uma rodovia, é um lugar tão bom quanto qualquer outro. Desimportante, sofrido, ninguém para socorrer. Trinta segundos depois, estaria morto. Ainda queria sair correndo, queria tentar se levantar. Seu corpo não respondia. Não vai desistir, mas nem tudo é dentro de sua vontade. Pudesse escolher, andaria na coleira como tantos outros que viu por aí quando ainda vivia na cidade. Avançava sobre eles, mas os invejava. Tivesse o amor, talvez não estivesse ali, despedaçado, decepado. Tudo fica escuro.

Metros atrás, uma motocicleta passa. Muito impactado com o que viu acontecer, reduz a velocidade. Olha de relance, mas sabe que não pode fazer mais nada. Continua; contudo, naqueles microssegundos, troca olhares com aquela criatura em seu último momento do mundo. Queria poder ajudar. O cão fica na mente do motociclista. O cão está na mente do motociclista até hoje.

Os filhos do finado e desimportante cão nasceram, de fato. Oito deles. Seu destino, incerto, mas projetável. Com sorte, seriam adotados. Realisticamente, seriam os próximos a serem atropelados.

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